Notícias sobre arbitragem do investimento - I
Notícias sobre arbitragem do investimento - I
2014
1. O destaque nesta matéria vai para o acordo amigável concluído entre a Argentina e a Repsol, em 27 de fevereiro de 2014, a propósito da nacionalização, pela primeira, de 51% da YPF, empresa detida pela segunda. Tal nacionalização efetivou-se através da Lei n.º 26.741, publicada em Maio de 2012, e conhecida como “Ley de Soberania Hidrocarburifera Nacional”, que declarou, como objetivo de interesse público nacional, a autonomia no abastecimento de hidrocarbonetos, bem como da sua pesquisa, produção, industrialização, transporte e comercialização, a fim de garantir o desenvolvimento económico com equidade social, a criação de emprego, o aumento da competitividade dos vários setores económicos e o crescimento equitativo de províncias e regiões (v. artigo 1.º).
Na sequência do diploma expropriatório, a Repsol demandou a Argentina ao abrigo do tratado bilateral de investimento (BIT) celebrado entre a primeira e a Espanha, processo, porém, que culminou num acordo amigável, cujos termos podem ser integralmente consultados em http://italaw.com, e que implicou o pagamento, pela expropriante, de uma indemnização no valor de 5 mil milhões de dólares americanos.
2. Igual desfecho não teve o caso Guaracachi América v. Bolívia, onde, a par da questão da expropriação direta e do conceito de “indemnização justa, adequada e sem demora injustificada” – conhecido como a “fórmula de Hull” – foi também objeto de apreciação um problema de expropriação indireta. Vejamos.
A disputa opôs a Guaracachi América e a Rurelec, empresas com sede nos Estados-Unidos e no Reino Unido, respetivamente, à Bolívia, no quadro dos tratados bilaterais de investimento concluídos entre esta e aqueles dois Estados. As demandantes eram detentoras de participações sociais maioritárias na EGSA, uma das empresas resultantes da privatização do setor elétrico boliviano a partir das leis emanadas no início da década de noventa do século passado (“Ley de Inversiones”, “Ley de Privatización”, “Ley de Capitalización”, etc). Tais leis visaram, à semelhança do que sucedera na Argentina, atrair o investimento estrangeiro para os setores de rede, garantindo, para o efeito, um ordenamento sectorial urdido em torno dos princípios da eficiência, da transparência, da qualidade, da adaptabilidade e da continuidade (par. 424 da decisão arbitral).
Sensivelmente a partir de 2006, porém, a Bolívia promoveu um conjunto de alterações no quadro regulatório, entre as quais se contou a modificação da fórmula de cálculo das tarifas e dos preços spot, e que culminou na nacionalização da participação da Renelec na EGSA, em 2010, por banda do decreto supremo n.º 0493.
A par da disputa quanto ao valor da indemnização a pagar pela Bolívia à Renelec, na qual teve ganho de causa a demandante, o tribunal arbitral apreciou a questão de saber se as sucessivas alterações ao quadro regulatório do setor elétrico não consubstanciariam uma “expropriación rampante” ou uma “creeping expropriation”, na formulação anglo-saxónica mais comum (sobre o conceito, v. Rudolf Dolzer/Christoph Schreuer, Principles of International Investment Law, Oxford, 2008, p. 114).
Ora, aqui o tribunal, desconectando as alterações promovidas no setor elétrico de uma qualquer estratégia visando a nacionalização da EGSA e a diminuição do seu “valor de mercado”, reafirmou duas proposições que, pelo menos desde a reflexão (traumática) induzida pela “crise argentina”, passaram a integrar o património normativo de certos standards do direito do investimento estrangeiro, mormente do standard de proteção contra a expropriação e do standard FET (Fair and Equitable Treatment). Os dois pontos a destacar no aresto são, pois, o seguintes:
- Na ausência de um compromisso jurídico expresso em matéria de estabilização das fórmulas de cálculo e preços, o investidor estrangeiro não goza, por meio do direito do investimento estrangeiro, de um qualquer direito à não modificação de tais fórmulas (v. par. 434 da decisão arbitral);
- As alterações postas em marcha pelo governo boliviano, para além de não arbitrárias, continuaram a assegurar ao investidor um retorno razoável e suficiente para “cobrir” o investimento efectuado. Nas palavras do tribunal, “los beneficios provenientes de la inversión continuaban, se obtenia una ganancia razonable y los costos economicos y financieros del suministro estaban cubiertos” (v. par. 426).
O texto integral da decisão arbitral pode ser consultado em http://italaw.com/.
3. Sublinhe-se, finalmente, o caso Stati v. Cazaquistão, que ajuda a compreender a evolução recente do direito do investimento estrangeiro. O demandante recorreu à arbitragem lançando mão da cláusula arbitral constante do Tratado da Carta da Energia, tendo o tribunal concluído que o direito aplicável à disputa seria o direito internacional, mormente os standards de tratamento constantes daquele tratado (par. 842 da decisão arbitral).
Em termos sucintos, a disputa teve por base uma sequência de ações de entidades públicas do Cazaquistão sobre o investimento de que o demandante aí era titular e que assentava num conjunto de empresas, a KPM e a TNG, que operavam no setor da produção e transporte de gás natural. Aquelas entidades decidiram, ao arrepio de qualquer competência legalmente atribuída e na sequência de um comando específico do Presidente do Cazaquistão, reclassificar o tipo de gasodutos manobrados por estas empresas, ao ponto de as mesmas deixarem de possuir as licenças necessárias para neles operarem. O processo culminou numa investigação financeira e criminal à KPM e à TNG, da qual resultaram multas no valor de muitos milhões de dólares bem como a aniquilação do investimento do demandante.
Apurou o tribunal arbitral a existência de uma violação do standard FET (par. 1086 da decisão arbitral) e a ocorrência de uma expropriação indireta ilegal (par. 1120), concluindo que se estava perante “a string of measures of coordinated harassment by various institutions”. Com efeito, como se lê no parágrafo 1087 da decisão final, «there was no change in the pipeline from the date that Kazakh authorities approved the design and construction of the pipelines until the 18 november 2008 inspection where the Financial Police – who respondent agrees are not the competent authority to classify a pipeline – declared that the pipelines at issue were “trunk” rather than field pipelines». Mais importante ainda, no parágrafo 1092, o tribunal avança que durante a sequência de inspeções a que a KPM e a TNG foram sujeitas, “no remedies were available to claimants”.
A atuação estadual em causa violou aquele conjunto mínimo de regras e princípios jurídicos que todos os Estados, independentemente do seu direito interno, devem assegurar aos investidores estrangeiros, e que normalmente se conhece por “international minimum standard”.
Permanece controversa a questão de saber se o standard FET se identifica com este standard mínimo, apenas atuando em situações de lesividade extrema - como a ocorrida in casu - ou se a evolução do direito internacional do investimento dotou o FET de um conteúdo normativo autónomo e mais exigente, que permite o escrutínio global da atuação estadual em termos mais próximos daqueles que, no direito interno, são levados a cabo pelo direito constitucional e pelo direito administrativo. O caso Stati v. Cazaquistão é, neste sentido, um caso “simples”: independentemente do que seja o standard FET, certo é que estamos perante um critério jurídico que não tolera situações de “ataque coordenado” e especificamente dirigido a um certo investimento.
O texto da decisão arbitral, que data de 19 de dezembro de 2013, pode ser integralmente consultado em http://italaw.com/.
Notícias sobre arbitragem do investimento - I
21/05/14
“Na ausência de um compromisso jurídico expresso em matéria de estabilização das fórmulas de cálculo e preços, o investidor estrangeiro não goza, por meio do direito do investimento estrangeiro, de um qualquer direito à não modificação de tais fórmulas”
Guaracachi América v. Bolívia