Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
038192
Nº Convencional: JSTJ00002119
Relator: VILLA NOVA
Descritores: CHEQUE SEM PROVISÃO
DESISTENCIA DA QUEIXA
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ198712160381923
Data do Acordão: 16-12-1987
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IS 1988/01/28, PÁG. 301 A 303 - BMJ Nº 372 ANO 1988, PÁG. 129
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL / DIR PENAL ECON.
DIR CONST - DIR FUND.
Legislação Nacional: CONST82 ARTIGO 29 N4.
CP886 ARTIGO 125 N4 PAR6.
CP82 ARTIGO 2 N4 ARTIGO 111 N1 ARTIGO 114 N2.
D 13004 DE 1927/01/12 ARTIGO 24.
L 25/81 DE 1981/08/21 ARTIGO 6.
DL 400/82 DE 1982/09/23 ARTIGO 5.
DL 402/82 DE 1982/09/23 ARTIGO 52.
DL 78/87 DE 1987/02/17 ARTIGO 7 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1983/07/21 IN BMJ N328 PAG383.
Sumário :
Em crime de emissão de cheque sem provisão, cometido antes da entrada em vigor do Codigo Penal de 1982, a desistencia da queixa, verificada apos essa entrada em vigor, extingue a responsabilidade criminal do reu, excepto se ja tiver transitado em julgado a respectiva decisão condenatoria.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em sessão plenaria, no Supremo Tribunal de Justiça:

Com base no artigo 668 do Codigo de Processo Penal, o digno procurador-geral-adjunto neste Supremo Tribunal interpos recurso para o tribunal pleno do Acordão de 3 de Julho de 1985 (folhas 10 e seguintes), com o fundamento de estar em oposição com o Acordão de 21 de Junho de 1983 (Boletim do Ministerio da Justiça, n. 328, pagina 383), ambos deste Supremo Tribunal.

O aludido digno magistrado concretizou do seguinte modo a invocada oposição:
Em processos por crimes de emissão de cheques sem provisão, perante a mesma factualidade e no dominio da mesma legislação, o Acordão de 21 de Junho de 1983, transitado em julgado, decidiu que a lei reguladora do perdão de parte e sempre a vigente a data da apresentação da declaração do perdão, ainda que seja menos favoravel ao reu do que a existente a data da pratica do crime, e o acordão recorrido decidiu que a lei reguladora do perdão de parte e a que vigorar a data da comissão do ilicito a que o perdão respeita, se for mais favoravel ao reu.


O acordão de folhas 21 a folhas 22 reconheceu preliminarmente a existencia da invocada oposição.


Ainda o digno procurador-geral-adjunto deu parecer sobre a solução a dar ao conflito de jurisprudencia, pronunciando-se favoravelmente a tese do acordão recorrido e propondo a seguinte redacção do assento:
Em crime de emissão de cheque sem provisão cometido antes da entrada em vigor do Codigo Penal de 1982 o perdão de parte concedido apos ela extingue a responsabilidade criminal do reu, excepto se ja tiver transitado em julgado a respectiva sentença condenatoria.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


O acordão, que reconheceu a existencia da oposição, não impede que o tribunal pleno decida em contrario (artigo 766, n. 3, do Codigo de Processo Civil, ex vi do artigo 668, paragrafo unico, do Codigo de Processo Penal).
Reexaminando a questão, e de concluir que a oposição existe.
Com efeito, os Acordãos de 21 de Junho de 1983 e de 3 de Julho de 1985 foram proferidos relativamente a crimes de emissão de cheques sem provisão cometidos antes da entrada em vigor do Codigo Penal de 1982; depois dessa entrada em vigor, e posteriormente a publicação das decisões condenatorias da 1 instancia, houve, no processo em que foi lavrado o primeiro desses acordãos, declaração de perdão do ofendido e, no processo em que, foi lavrado o segundo, declaração do ofendido a desistir da queixa e a conceder o perdão; os mencionados acordãos decidiram em sentido oposto: o primeiro não deu qualquer relevancia ao perdão e o segundo, em face da aludida declaração do respectivo ofendido, julgou extinto o procedimento criminal.


Encontrando-se, deste modo, justificado o recurso para o tribunal pleno, ha que apreciar o seu objecto.


A questão em debate resulta de a uma lei que aceitava a eficacia do perdão de parte, nos casos em que podia ter lugar, exercido ate ao transito em julgado de condenação, ter sucedido outra que so admite a desistencia da queixa, nos casos em que, igualmente, pode ter lugar, ate a publicação da decisão da 1 instancia.Dispunha, na verdade, o artigo 125 do Codigo Penal de 1886:O procedimento criminal, as penas e as medidas de segurança acabam não so nos casos previstos no artigo 6, mas tambem:


..........................................................
4. Pelo perdão da parte ou pela renuncia ao direito da queixa em juizo, quando tenham lugar:


..........................................................
Paragrafo 6. O perdão da parte so extingue a responsabilidade criminal do reu quando não ha procedimento criminal sem denuncia ou sem acusação particular, excepto se ja tiver transitado em julgado a respectiva sentença condenatoria, e ainda nos casos especiais declarados na lei.
O Codigo Penal de 1982, depois de dispor, no n. 1 do artigo 111:
Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresenta-la, salvo disposição em contrario, a pessoa ofendida, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação. passou a preceituar no n. 2 do artigo 114:


O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, ate a publicação da sentença de 1 instancia. A desistencia impede que a queixa seja renovada.



A desistencia a que se refere este preceito tem de ser havida como equivalente ao perdão da parte a que aludiam o n. 4 e o paragrafo 6 do artigo 125 do Codigo Penal de 1886, dado que muito bem se disse no acordão recorrido:


[..] no-lo autoriza o autor do codigo actual ("o perdão de parte esta contido, como deve, na materia respeitante a queixa" - disse no Boletim do Ministerio da Justiça, n. 151, pagina 33) e porque foi essa a nomenclatura utilizada no Decreto-Lei n. 223/83, de 27 de Maio ["o reu pagara imposto de justiça: [..] quando for isento de pena em virtude de perdão [...]".
(Não esta em causa a possibilidade do perdão da parte e da desistencia da queixa quanto aos crimes de emissão de cheques sem cobertura, uma vez que o respectivo procedimento criminal so pode ser instaurado a pedido dos portadores dos cheques - artigo 24 do Decreto-Lei n. 13004, de 12 de Janeiro de 1927, quer na redacção inicial, quer na dada pelo artigo 6 da Lei n. 25/81, de 21 de Agosto, e pelo artigo 5 do Decreto-Lei n. 400/82, de 23 de Setembro.)


Conquanto tivesse chegado a ser dominante na Secção Criminal deste Supremo Tribunal o entendimento que orientou, entre outros, o Acordão de 21 de Junho de 1983, tal entendimento foi-se tornando evanescente.
E com fundadas razões.


Estabelece o n. 4 do artigo 2 do Codigo Penal de 1982:


Quando as disposições penais vigentes no momento da pratica do facto punivel forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, sera sempre aplicado o regime que concretamente se mostre mais favoravel ao agente, salvo se este ja tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.
Viu-se na expressão "disposições penais" uma referencia unicamente a normas incriminadoras e sancionatorias.


Mas tal expressão não pode sofrer uma limitação dessa natureza.
Trata-se, genericamente, de "disposições penais", em consonancia com o artigo 29, n. 4, da Constituição da Republica Portuguesa, que se refere a "leis penais".


Muito bem se disse tambem no acordão recorrido:


Era este espirito de abertura que Eduardo Correia transmitia a comissão revisora (Boletim do Ministerio da Justiça 141, 137), depois de o beber nos Codigos estrangeiros. Le-se no suiço, fonte confessa do nosso, que ele (le code) sera aplicado aos crimes anteriores, se for (le code, repete) mais favoravel ao agente que a lei então vigente.


Repare-se, e o "codigo", como conjunto sistematico de normas, que se aplica.
Tambem se viu no perdão da parte e na desistencia da queixa uma natureza juridica situada no plano do direito processual de aplicação imediata.
Tal natureza juridica e controvertida.


Mantovani, in Diritto penale, parte generale, 1886, p. 44, pronuncia-se no sentido da natureza processual da desistencia da queixa, dizendo que, "embora o Codigo a enumere entre as causas extintivas do crime, a remissão da queixa (remissione di querela) e geralmente considerada como causa de improcedibilidade superveniente e, juntamente com a querela, tratada no ambito do processo penal".


Tambem Antolisei, in Manuale di diritto penale, parte generale (n. 7), p. 603, se pronuncia no mesmo sentido, argumentando que, "sendo a querela um instituto de natureza puramente processual, a logica impõe considerar da mesma forma a remissão".


Porem, Bettiol, in Direito Penal, parte geral, t. IV, trad. port., pp. 276 e 277, defende a natureza substantiva do instituto da desistencia da queixa ou perdão da parte, dizendo que se trata de uma causa de extinção do crime - "a remissão, como manifestação de vontade, e um negocio juridico pelo qual a parte ofendida por um crime perseguivel mediante acusação particular extingue a pretensão punitiva ja accionada pelo Ministerio Publico, a quem, atraves da querela, foi aberto o caminho a promoção da acção penal".


Mas, ainda que, porventura, o n. 2 do artigo 114 do Codigo Penal de 1982 tivesse natureza processual, isso não invalidaria a tese acolhida no acordão recorrido.
A tendencia moderna esta orientada no sentido de se não aplicar a lei processual nova aos processos pendentes, principalmente quando ela possa contender com efeitos do acto praticado no dominio da lei antiga (aqui a queixa) ou agravar a punição do agente do crime (aqui tirando-lhe uma expectativa de perdão).


Neste sentido se esta encaminhando a doutrina (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, p. 112, e J.


Barreiros, Processo Penal, vol. I, p. 207).


E e o que ja resulta do artigo 52 do Decreto-Lei n. 402/82, de 23 de Setembro, e do n. 1 do artigo 7 do Decreto-Lei n. 78/87, de 17 de Fevereiro, que aprovou o novo Codigo de Processo Penal, a entrar brevemente em vigor.


Acresce que:


O caminho correcto não esta [...] em discutir a natureza juridica de um instituto e dai extrair consequencias para solucionar as questões decorrentes da aplicação da lei no tempo. Este seria sempre um caminho tributario de um pensamento conceitualista, que, como e sabido, pode conduzir a resultados falsos ou injustos. Disse, a este proposito, Manuel de Andrade, Sentido e Valor da Jusrisprudencia (oração de sapiencia lida em 30 de Outubro de 1953), Coimbra, 1973, paginas 35 e 36:


"[...] trata-se da demasiada intensificação da actividade conceitualizadora, ao que pode chamar-se intemperança conceitual ou construtiva, e da tendencia para como que substantivar os conceitos, utilizando-os como premissas para a dedução de novas soluções - de conteudos normativos não previamente apurados pela interpretação ou integração das leis. Desses males, que tanto a afligiram no seculo transacto, ainda hoje não esta inteiramente sanada a jurisprudencia." Na verdade - disse ainda aquele saudoso mestre (Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. I, p. 188)-, "o direito [...] tem uma função pratica que consiste em descobrir a solução mais justa e conveniente para os diversos conflitos. Tal solução não deve procurar-se na construção juridica, reduzindo-se o juiz a "pura maquina de subsunção", regida pelas leis da logica formal. Diz-se que a doutrina conceitualista traz consigo mais certeza do direito, pois procura as soluções juridicas dentro das leis imutaveis, precisas e objectivas da logica. Admitindo que assim seja, tambem e verdade que [...] maiores possibilidades da realização da ideia de justiça e de equidade deve ser, afinal, a suprema ambição do direito. Os conceitos, submetidos as leis de uma logica inflexivel, sacrificam a generalização a vida real e os interesses concretos que o direito pretende tutelar".

(Figueiredo Dias e Anabela Miranda Rodrigues, a folhas 44 e 44 verso dos autos.) Consequentemente, em face do maior favor para o reu da aplicação do paragrafo 6 do artigo 125 do Codigo Penal e 1886 e do mais exposto, e de confirmar a decisão recorrida e de lavrar o correspondente assento.
Nestes termos, decidem negar provimento ao recurso e lavrar o seguinte assento:
No crime de emissão de cheque sem provisão cometido antes da entrada em vigor do Codigo Penal de 1982 a desistencia da queixa, verificada apos essa entrada em vigor, extingue a responsabilidade criminal do reu, excepto se ja tiver transitado em julgado a respectiva decisão condenatoria.
Sem imposto de justiça.

Lisboa, 16 de Dezembro de 1987

Silvino Alberto Villa-Nova- Licinio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - Augusto Tinoco de Almeida -
- Aurelio Pires Fernandes Vieira - Frederico Carvalho de Almeida Baptista - Julio Carlos Gomes dos Santos - Jose Alfredo Soares Manso Preto - Fernando Pinto Gomes - Manuel Augusto Gama Prazeres - Jose Manuel Meneres Sampaio Pimentel - Claudio Cesar Gama Vieira - Antonio de Almeida Simões - Antonio Alexandre Soares Tome - Abel Pereira Delgado - Salviano Francisco de Sousa - Joaquim Jose Rodrigues Gonçalves -
- Cesario Dias Alves - Mario Sereno Cura Mariano - Jorge de Araujo Fernandes Fugas - Jose Saraiva - Jose Isolino Enes Calejo - Antonio Poças - Jose Manuel de Oliveira Domingues - João de Deus Pinheiro Farinha - João Augusto Pacheco e Melo Franco - João Solano Viana - Joaquim Augusto Roseira de Figueiredo - Pedro Augusto Lisboa de Lima Cluny - João Alcides de Almeida.